quarta-feira, 3 de março de 2010

Hábito

Quando ela chupou o dedão do pé de Arthur, sapeca, sentiu como que um espasmo sem movimento. Alguma coisa estava fora de lugar e precisaria descobrir. Arthur havia feito alerta ao retirar as meias, apontando as unhas em processo de desintegração, consumidas pelos fungos, mas não era isso. Alguma coisa diversa, e não o gosto de sua unha ou o roçar ríspido na mucosa, algo que ia além, improvável e impossível de se perceber sem dedicação exclusiva.

Há exatos sete anos a mesma sensação havia se feito notar durante um café da manhã com o executivo de uma empresa, após uma noite de entrega desinteressada e de prazeres culpados. Mas com Arthur o prazer não era culpado ou indiferente, e prova disso é que indiscutivelmente lhe chupava os dedos do pé, toda noite, eufóricos ou sonolentos, ríspidos ou dóceis, querendo ou não. Era sagrado.

Cláudia sempre supôs que a noção do sagrado estaria acompanhada da noção do pecado e, bastou visualizar suas ideias, os dedos sacros, que pegou um trem com destino à igreja que frequentava sua avó, Dijanira, uma senhora corpulenta, silenciosa e alienada. Antes de ir à igreja, encontrou a pia da avó repleta de louças acumuladas, o sebo já entranhado, e deu tudo se si em sua missão de livrar os pratos do excesso, da gordura que lhes consumia dia após dia.

- Deixe isso aí, minha filha. É assim que se estragam as mãos. Uma mulher precisa cuidar de seus dedos.

E se Cláudia não respondeu palavra sequer, Dijanira não se deu por satisfeita até, como em todos os seus discursos, sobre o que forem, desaguar em seu assunto predileto.

- A Licinha não cuidou das mãos e agora está aí, solteira.

Licinha era a irmã de Cláudia, um vulto triste que pairava no subconsciente de todos e até mesmo os móveis da casa haviam apreendido seus modos, opacos e riscados.

- Licinha, vem cá! Cláudia está aqui, venha. Sempre reclusa, essa menina.

Cláudia o tempo todo esteve ciente de suas atitudes e, quando decidiu deixar Licinha no centro de reabilitação, poderia projetar com exatidão as consequencias de sua escolha. Anos se passaram, mas Licinha ainda vivia lá, um lugar tão branco quanto o do hábito da freira que Cláudia veria, hoje, ao sair da casa de sua avó.

- Sempre imaginei que Licinha casaria antes de você.

Quando crianças, Cláudia era tida por Licinha como a favorita de seus pais. Entretanto, após a morte súbita e acidental do casal, Licinha havia lhe confidenciado que dizia apenas como provocação, no fundo uma tentativa de chamar a atenção. Foi nesse dia que as coisas tomaram outra forma para Cláudia, pois até ali sua frieza e completa ausência de sentimentos pela irmã se dava em liberdade, sem culpa.

- Era hábito. Eu só dizia por dizer.

A revelação de Licinha, aparentemente banal, revelava afetividade com a qual Cláudia não conseguia lidar. Era um peso insuportável estar assim, tão descaradamente ciente do amor que sua irmã era capaz de sentir. Não se passaram dois meses até a internação de Licinha.

- Preciso ir.

A igreja seguia a lógica de uma igreja de cidade muito pequena, era pequena. Úmida e feia. Seus adornos eram raros e vulgares ao mesmo tempo. Cláudia ajoelhou-se e, ao juntar as palmas das mãos, sentiu um espasmo, violento, jogando seu corpo para frente, como se uma golfada de vômito inexistente estivesse prestes a deixar seu corpo, espalhando-se pelo chão da igreja.

Chegou em casa muito tarde, perto das duas da manhã. Na cozinha um bilhete, JÁ FUI DORMIR, a noite era bastante clara e, mesmo sem luzes, Cláudia foi capaz de comer um sanduíche pronto que a aguardava no refrigerador. Tirou a blusa enquanto se dirigia ao banheiro, lá tirou a saia e enquanto se secava deu-se conta de uma mancha roxa em seu joelho esquerdo. Caminhou até o quarto e encontrou o marido, como era comum, diante da cama, de joelhos e com as mãos fortemente agarradas. Secou os cabelos, vestiu seu pijama e chupou o dedão de Arthur. Depois dormiram.

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