domingo, 16 de dezembro de 2012

Politicamente O Quê? (O Terceiro Milênio)

- 15 anos é uma data muito especial, querida.
- Eu não quero, mãe.
- É tudo tão óbvio: se tu não estiver dentro do grupo, o grupo não vai estar em ti. Entende?
- Mas eu não sou bissexual.
- Nem sempre querer é poder, minha filha.
- Eu não sinto vontade de beijar uma menina.
- E quando teus netos forem pequenos? Vai querer mostrar o vídeo do debut para eles... E vai estar com um homem? Estamos no terceiro milênio, querida.
- Eu não quero vídeo nenhum.
- Então eu não vou distribuir camisinhas para os convidados.
- Ótimo.
- Eu não estou falando sério, minha filha.

MESES DEPOIS

- Essa é a Regina, vocês tão lembrados? A amiga da garota que interpretou minha namorada na festa.
- Oi, gente...
- Oi, querida. Que bom, minha filha, fico feliz que tenha seguido meus conselhos.
- Estamos saindo há alguns meses e chegamos à conclusão de que precisamos de um filho.
- E, para isso, precisamos da ajuda do senhor.
- Mas como eu poderia ajudar?
- Quero que tu transe com a Regina, pai.
- Tá louca, minha filha?
- Não. O pai é bonito, inteligente, saudável. Câncer todo mundo tem. Isso é o de menos.
- Não posso aceitar, querida, fico arrepiada só em pensar.
- Tu não era a favor do “novo jeito de governar”?
- O que tem o cu com as calças, minha filha?
- As pessoas não podem viver no século passado, não tem nada mais retrô que esse preconceito bobo.
- Mas, filha... Ela e teu pai?
- Sim. E ele já me confirmou com a cabeça, quando tu...
- Confirmou nada!!
- Confirmei?
- Calma gente, também não é o fim do mundo.
- Ninguém te perguntou, Regina. Minha filha, tu é uma menina tão bonita, sem câncer, inteligente... Por que tu mesma não tem o filho com teu pai?
- Ah, não. Com papai eu não trepo.
- Acho uma boa idéia, querida. Seria um filho seguro.
- Desculpa, mas ele podia nascer retardado.
- Ah, é, Regina? Antes retardado do que negro. Precisamos entender que o mundo não é tão avançado assim, estamos apenas em 2007. E teus traços não passam em branco. Eu não poderia suportar que meu neto fosse vítima de pessoas preconceituosas.
- Não aceita um negro na família, é isso, mãe?
- Claro que aceito, e a Regininha está aí do teu lado para provar. Mas não quero que meu neto seja preto. Não é preconceito, minha filha, tu não sabe o quanto ele ia sofrer com isso, as pessoas são cruéis. Basta transar com teu pai e contar aos outros que não sabe de quem era o esperma.
- Eu quero um filho que se pareça comigo e com a Regina, não só comigo. E, como eu pareço com papai, então papai e ela dá perfeito. É a mistura certa.
- Não, minha filha, não dá perfeito. Porque tu não te parece nada com teu pai, sinto te informar, tu parece é comigo. E eu acho fundamental que teu filho se pareça contigo.
- Por que não parecer comigo?
- É, por que não com a Regina?
- Chega, quem vai transar sou eu! Que seja a Regina.
- Porco.

domingo, 26 de agosto de 2012

Mal Necessário

Foi um sentimento ruim, essa coisa que ele sentiu. Estava deitado, talvez dormindo sobre o colchão d'água da futura ex-namorada, quando veio esse tal pressentimento. Sim, porque o colchão não era dele - era da namorada. Um colchão transparente e pintado com uns peixinhos dourados, alguns diriam cafona, mas que ao menos balançava - e por que mais alguém teria um colchão d'água?

Ficou chateado ao pensar que se fosse ao banco e sacasse tudo, mas tudo mesmo, sem que restasse um centavo sequer em sua conta, ele compraria, no máximo, um colchão de solteiro. Só que esse não era um dinheiro que ia ficar ali parado, como um colchão normal, esse era um dinheiro-colchão-d'água, um dinheiro que se movimentava; no caso, sempre para menos, já que dinheiro não cai do céu, era assim que seu amigo dizia, como se fosse uma avó debilóide e distante de qualquer espírito contemporâneo.

Ele sabia somar. E subtrair - menos um, menos um, menos um, menos um de um total de, sei lá, um colchão de solteiro sem água, isso logo resultaria em um torrão de amendoim do armazém da esquina. Lá, onde ele gostava de tomar seu cafezinho, todas as tardes, sem falta. Ele fazia questão de tomar um cafezinho, ou raramente um chazinho, é verdade, tanto quanto gostava de acentuar essas palavras equivocadamente, só pelo prazer de identificar os poucos se davam conta do erro. Nunca foi de economizar. "E, de cafézinho em cafézinho, fico sem grana pro filézinho", escreveu certa vez para si mesmo.

- Gostou?
- Gostei.
- Podia ser melhor.
- Pra ti tudo sempre podia ser melhor, assim fica difícil.

Gostava de discutir com a namorada e eles já haviam armado uma espécie de esquema a ser seguido em que, quando um dizia uma coisa, o outro deveria contrariar essa coisa por um determinado número de vezes, até que, finalmente, desse o braço a torcer - só que, quando a situação chegasse nesse ponto, a outra pessoa deveria mudar de ideia, e assim por diante. Era um sistema que particularmente preenchia o relacionamento, embora o sexo eventualmente lembrasse um filme do Rohmer, de tão dialogado. Não que ele gostasse de pensar assim, pois sempre rejeitou qualquer tipo de referência intelectual, ao ler um texto ou assistir a um filme. Mas de vez em quando era incontrolável, e o pior de tudo é que ele pensava em Rohmer porque Woody Allen seria óbvio demais, e esse pensamento logo fazia com que ele sentisse um certo nojo de si mesmo.

- Pois eu adorei.
- Eu também.

Às vezes cediam e viviam felizes para sempre, por algumas horas. Não seria o caso das próximas.

- Como assim?

Ela não entendeu. Mas se alguém criou a expressão mal necessário é porque um negócio desse tipo existe mesmo, assim como existem as tiradas de água do joelho ou se passam faxes a torto e a direito, ainda que o uso do fax hoje em dia possa parecer um pouco defasado. As últimas palavras que trocaram poderiam ser consideradas estranhas para um rompimento:

- Eu te amo.
- Eu também.

Mas era mesmo um mal necessário. Jamais economizaria um centavo com sua namorada, não seria capaz de poupá-la de um bom livro, um bom filme, ou até mesmo um mau filme no cinema, um bom jantar em um bom restaurante, ou até mesmo um mau jantar em um mau restaurante ou um mau jantar em um bom restaurante, pois ninguém é perfeito. Um pouco antes das últimas palavras, ele explicou a ela que a relação estava fadada ao fracasso, mas fracasso mesmo foi a explicação, que não convenceria nem mesmo uma senhora com grau de demência já bastante avançado.

- Eu não entendo, mas respeito sua decisão.

Ela disse assim: sua. Era uma expressão pronta, não era sua. Sua expressão seria tua, e também não seria uma questão de respeito, mas de foda-se, e chegaríamos enfim a "foda-se tua decisão", mas ela foi assim, classuda como em um melodrama contido. Mal necessário. Como poderia deixar que ela perdesse seus livros, filmes e discos e jantares? Os dois ficariam em casa e diriam eu te amo, mas em algum momento ela sentiria falta de comprar uma jóia ou de poder visitar os tios em São Paulo. Ele sabia que ela abriria mão de tudo, de bom grado, o que só dificultava sua decisão.

Após o derradeiro eu te amo, pediu que aguardasse por uma surpresa quando, na semana seguinte, ela recebeu em sua casa um enorme embrulho das Lojas Americanas acompanhado por um bilhete.

"Meu amor, tudo o que tenho foi, é e será sempre seu".

Rasgou o papel de presente e deixou por um instante seu queixo cair ao se deparar com um colchão de solteiro. Como pode alguém ser tão cruel? Estarrecida e ensandecida de raiva, munida de um canivete suíço, presente do terceiro ano de namoro, destroçou sem dó nem piedade o colchão até que restassem apenas tufos de espumas espalhados pelo chão do apartamento. Pensou por um instante nas crianças que dormiam ao relento, na calçada ao lado, mas em pouco tempo chegou à conclusão de que se tratava de um mal necessário. Dormiu a mais tranquila das noites.