quarta-feira, 11 de junho de 2008

Baú

Logo cedo abri o baú, de onde retirei um vestido. Ele estava ali, sobre a cama, repousando como em seu leito de morte, quando decidi vesti-lo, decidi que apropriado mesmo seria vesti-lo e sair pelas ruas, vejam aquilo, vejam só, vejam que caimento, enquanto eu sequer me daria conta do que se passaria, apenas contente em poder tê-lo como parte de mim - o que fui, sou e serei.

O vestido era de minha bisavó. Interrompi seu sono profundo colocando-o em frente ao meu corpo, diante do espelho. Tão antigo, e tão novo, o espelho. Vestido e espelho? Não forma o par, eu pensei, e terminei entrando dentro de seus aposentos, um véu branco e preto, leve e pesado, como sempre são os dias. Não me senti confortável.

Durante anos imaginei o momento e, agora, era muito diferente. Planejava sentimentos intensos, o vestido evocando um passado que jamais vivi, nunca estive presente. A frustração aos poucos tomou conta. Diante do espelho e só. Saí pelas ruas.

Acenei aleatoriamente para qualquer um, ninguém percebia o vestido? Rodei, dancei sozinha. Percebi que na rua só existia uma árvore, uma cheia de folhas secas e bastante antiga. Vou subir até a altura do galho mais receptivo, o mais alto possível, porque antigamente era habitual escalar árvores em brincadeiras com os amigos. Pensei em gritar alguma coisa, fincar a bandeira.

Não gritei e estava agora tomando um chá com biscoitos, a porcelana herdada de gerações passadas: chá e biscoito e o mesmo gosto de todos os cafés da manhã, a mesa vazia como em todos os cafés da manhã, uma forte luz como em certos cafés da manhã. Lavei a louça estreando minhas luvas de silicone.

Diante do espelho, ali estávamos - eu e o vestido. Não senti nada.

Sentei em minha cama, alguma coisa estava fora de lugar. Delicadamente baixei suas alças e o tecido se derramou pelo corpo até o chão, no justo momento em que perdi a primeira lágrima. Me vi nua diante do espelho de formato arrojado e design pós-moderno - pela primeira vez. Um terremoto sem tremor.

Sei que, após o jantar, pude vestir o pijama do Pato Donald e dormir tranqüila, porque, finalmente, eu tinha sentido.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ô.Ô
Nossa!!! Excelente!!!! Senti um vazio em mim durante o texto, acho que foi a sensação de nostalgia, daquilo que não volta mais. Está tocante mesmo.

bjos,

Pri Lagosta

Anônimo disse...

satisfeito?