sábado, 1 de março de 2008

Ano Novo

A cada mês, ano novo. Suas listas jamais cumpridas renovavam-se. Agora, as coisas seriam diferentes. Era primeiro de março e o ano, enfim, começaria. Janeiro e fevereiro seriam perdoados, meses de férias e sol escaldante, pouco convidativos a mudanças. Março já era diferente: sem desculpas para seguir a vida. Sua primeira meta e, no dia primeiro, ela poderia perfeitamente ser cumprida, era transar com uma pessoa aleatória que encontrasse no meio da rua, somente pela diversão.

Pela primeira passou reto, era uma mulher obesa.
A segunda parecia fácil demais.

A terceira era perfeita, mas estava acompanhada de um provável companheiro e seria indelicado agir sem qualquer senso de decoro.

Ficaria com a quarta opção, mulher razoável, de média estatura e, possivelmente, ainda virgem - era jovem demais para se perguntar. Conversou por alguns instantes. Era chave de cadeia. Sua filha estaria com a mesma idade. Não lembrava direito de seu rosto. Quando abandonou a mulher, decidiu sair de mãos abanando - jamais se esqueceria do rosto de sua filha, aquele bebê prematuro, doente e estranhamente acolhedor. Esqueceu.

Abandonou a idéia. Seu humor agora se transformava em extenuante melancolia, configurando seu corpo em pó, dissolvendo-o. Lembrou de uma promessa feita há exatos dez anos. Escreveria uma carta a sua filha. Não esperaria por uma resposta, pois certas lacunas jamais são preenchidas, lembrava de suas provas de gramática. Naquela noite, gatos gritavam pela vizinhança e a folha permaneceu em branco. Hoje seria diferente. Sentou-se em sua antiga cadeira forrada por um veludo vermelho, desbotado.

Minha filha, olá, pode parecer estranho mas estou aqui, seu pai, sempre a carreguei em meus pensamentos e, noite ou dia, jamais a esqueci, mesmo que, posso confessar, vez ou outra sua imagem não me seja clara na cabeça, já passaram-se 14 anos e ainda sinto pela separação, a nossa, pois sua mãe nunca foi boa mulher para mim, era amarga e sua dor me consumia, não duraria muito ao lado dela, sou um homem de certa fragilidade, um marmanjo triste, enfim, um pai que foi capaz de abandonar sua filha, apesar de todo o amor que sentia, um amor parecido com aquele que sentimos quando somos muito pequenos e assistimos ao desenhos da Walt Disney, desenhos esses que deixei de aproveitar ao seu lado e vi sozinho, solidão essa que me faz escrever essa carta que, espero, não seja tão mal recebida como mereceria - sei que a ausência é ainda pior que má presença -, mas escrevo para dizer que mesmo não existindo, porque eu jamais existi, de fato, para minha filha, mesmo não existindo, sempre amei, mesmo desconhecendo, sempre amei e essa é minha maior dor, me dói por dentro e por fora, me dói não conhecer seu rosto e não acompanhar uma vida que criei, peço desculpas, mil delas, não prometo um retorno, não prometo me intrometer em uma vida da qual escolhi não fazer parte, não espero uma resposta, mas seria bem-vinda se possível, seria alentadora, seria como poder existir plenamente em uma não-existência, eu só peço desculpas porque sempre te amei.

Ao colocar o ponto final, sentia esgotamento profundo e também certo regozijo por ter cumprido, pela primeira vez, no primeiro dia do ano, o primeiro de março de dois mil e oito, sua tarefa. Antes de dormir, horas depois, estirou-se sobre a cama e, com apenas dois dedos, segurou a folha de papel que estava sobre a mesa de cabeceira. Abriu o papel e leu a carta que escrevera horas antes – ela não dizia muita coisa. Sentiu-se decepcionado, tinha expressado tanto e, agora, parecia tão pouco. Acendeu a lareira em pleno verão, a madeira em brasa estalava como em noites de inverno solitárias, colocou a carta ali, por entre lenhas e, enquanto queimava dirigiu-se a sua cama. Deitou, fechou os olhos e – pela primeira vez no ano – dormia.

Um comentário:

Vinny disse...

Pois, Moisés Westphalen, nunca comentou comigo do blog, né?

Bom trabalho!

Passarei a visitar.